Sou uma das ex-alunas do excelente Ginásio Clóvis Salgado nos anos de 1961. A escola era para lá de boa, com professores de sólida formação, especialmente os de matérias básicas, como Português: Marta Antiero. Personalidade das mais intensas e espetaculares que algum aluno pudesse esperar. Inesquecível para todo o sempre. Competente, empolgada, criativa, chiliquenta, temperamental, cantava, representava, uma artista completa. A aula dela era sempre um show. Inventava música para tudo, para a cidade (Cambuquira, terra de sonho e flores...), para professor (doutor Antônio, doutor Antônio, todo mundo conheceu, ele é o melhor coco que a Bahia já nos deu...). Lembro-me de que ela leu para a classe trechos pinçados de "O Coração", de Amicis. Minha impressão foi tão forte sobre aquele livro, que muitos anos mais tarde, na Internet, fui procurá-lo. Vi que se tratava de um clássico famoso na Europa, direcionado a jovens, para infundir-lhes, de maneira agradável e sutil, literariamente, sem caretices, virtudes fundamentais, como respeito ao próximo, amizade, ética e outras tantas. De acordo com o tradutor, o livro tornou-se o evangelho de muitas gerações, obra genial para todas as idades. Valia por mil aulas de Moral e Cívica.
Vejam só o feeling dessa professora, naquela cidade do interior... Para nós, adolescentes, ela fez toda a diferença. Até hoje digo que o português que tenho foi daquele ginásio. Depois dali, pouco a acrescentar. Na minha vida profissional, sempre me dei bem nessa matéria, que veio a se tornar a minha segunda natureza, dela sobrevivi. Quando conseguia me destacar, ficava evidente para mim a desigualdade de condições entre a minha escola e a das outra pessoas.
E Matemática, então! Era dona Tonete: personalidade exata, matemática total. Poucas palavras, objetividade, exigência máxima. Ninguém falava "gato" na aula dela, manejo de classe incrível. Era tempo de estudar teorema e havia um cem número deles a ser presentado à turma. Nos outros colégios, descobri, não se conseguia ver metade daquela matéria. Ela sim. E ainda com as recíprocas dos teoremas. Final de livro que ninguém via? Nós sim. Arrasei quando cheguei no preparatório para o vestibular. Mérito? Boa escola, coisa a que todos têm direito, mas quantos conseguem?
De dona Tonete guardei uma palavra ótima: "seria de bom alvitre que vocês..." adorei aquele "alvitre", divertido, com ar de empáfia. Usei-o sempre com sucesso.Tenho certeza, até hoje, de que o diferencial daquela escola, além das professoras, era o número de alunos em sala de aula. Não passávamos de quinze. Colocávamos as carteiras em semi-círculo, de maneira que todos pudessem se ver de frente e trocar idéias. Era algo bem revolucionário, até para os dias de hoje, um luxo. A situação era de tal forma especial, o tratamento do aluno tão individualizado, ao ponto de você encontrar sua professora na rua e ela lhe perguntar: porque vc não está em casa estudando? E a prova de amanhã?! A escola sempre em primeiro lugar, era isso que eles conseguiam incutir nos alunos, o engajamento, como numa gincana. Nem tudo eram flores, a cidade era pequena e não comportava, por exemplo, buscar fora um professor de Geografia. Procuravam o melhor que podiam, colocavam então alguém com boa vontade, nenhuma didática, para matérias consideradas, na época, menos exigidas. De repente aparecia um cidadão que sabia muito de Astronomia, então chamavam-no para ser nosso professor. Dessas idéias erráticas, que acabam dando certo. Era sempre algo a mais, um plus, que se oferecia aos alunos. Até hoje causo estranheza quando digo que tínhamos aulas de Astronomia no segundo grau. Preciso contar que esse era um senhor estranhíssimo, de nacionalidade bem diferente (ajude-me alguém daquela época!), de nome Sigmud Szabó (?). Figura interessantíssima, a quem chamávamos de "hominho da lua", e que de tão apaixonado por aquele satélite, conseguiu construir na cidade um obsevatório astronômico, que deveria ter custado um preço igualmente astronômico. Disseram que alcançou tal feito pela importância internacional conseguida neste assunto dos astros. Nós o adorávamos e o aborrecíamos muito, também. Oh, as aulas de Desenho... dona Geralda Garcia. "Seriíssima" e emprestava isso a sua matéria, que, de pouco relevante, passou a ter capacidade bombástica, dava bomba a torto e a direito. Dona Geralda muito elegante, fazia lembrar um gato, digo, uma gata angorá de pelos dourados, andava silente e falava bem baixinho, meio que no rom rom, mas ai, cuidado com essa matéria! E em História tinhamos a Dirce Penido, professora super alérgica, precursora disso, coisa rara naquela época de poucas alergias. Ela embrulhava o giz no papelzinho para escrever no quadro-verde novidade, chique, pois antes só víamos quadro negro. Ela tomava água a toda hora porque a garganta lhe secava muito e falava com aquela voz molhada. Falava no Tiurtil, que nós chamávamos Churchil, surpresa quando descobrimos que eram a mesma figura. Francês era com dona Marta também. Curioso observar que surgiam alunos revelação, que mostravam uma facilidade inusitada para a matéria, como um colega de nome Paulo César Brito, o Brito, como o chamávamos. As músicas em Francês, adoráveis "au clair de la lune, mon ami pierrot, prête-moi ta plume, pour écrire un mot"... e outra " tic tac tic tic, glu glu glu font le dandon e... (ajuda aí, você que estava lá também!). Depois dispensaram o Francês, uma lástima. Perda irreparável. Há pouco tempo, em um curso da Unb, uma professora fez uma piada usando de francês elementar, noventa por cento do ótimo grupo boiou, e eu, a do Clóvis Salgado, entendi!Também em Matemática revelou-se a Maria do Carmo Martins Teixeira. Lá pelo meio do curso acendeu lhe uma luz na cabeça. Em determinada época conseguiram um professor de Música para nós. Era o Sr. Raphael, pai de dona Marta. Ele nos ensinou tudo o que havia de cânticos pátrios, hino ao soldado, a Tiradentes, do estudante ("estudantes do Brasil, sua missão é a maior missão, batalhar pela verdade, impor a sua geração, marchai, marchai para frente..." pode continuar você) e o Hino Nacional, nos mínimos detalhes, retirando todos os vícios de letra e música. Então começamos a hastear a bandeira de manhã, para gastarmos nosso hino. Sempre contávamos com um rápido discurso de um professor advogado que dava aulas em outra turma. Começava sempre assim: "gostaria de ter o dom da palavra, mas como não possuo este colorido, tentarei expressar-me com palavras eivadas de retórica"... (com o que nós, malvadamente, fazíamos coro).Depois, a Música sumiu do currículo para mais tarde voltar com gente nova. Veio com a professora Dóris, músicas clássicas e espirituais negros "sweet Lord... come for to care my home..." este adorávamos, pela música e porque parecia que sabíamos falar Inglês.Para Ciências conseguiram o doutor Benedito Valias, que tinha um especial carinho e empenho por nomes científicos de animais. Até hoje me lembro do bradypus tridactylos, mirmecófaga jubata, crotalus terríficus, ornitorrincos paradoxus, entre outros e outros... intriga-me, agora, de onde sairiam aqueles programas de curso... assim como os da pálida Geografia, que até hoje não arregacei as mangas para estudar e boto a culpa sempre no ado, ado, ado, Ginásio Clóvis Salgado (nosso grito de guerra).Imagino o sufoco que era para a direção da escola preencher a demanda de professores, mas as pessoas que eles conseguiam davam o melhor de si. O primeiro diretor foi o doutor Antônio, depois, dona Vera, sua mulher. Nós, alunos, não tínhamos muito contato com diretores, que ficavam mais restritos a administrar essas pessoas gradas da cidade, que eram nosso professores. Tal administração não deveria ser tão fácil, pelas personalidades com que lidavam, ou não... como diria Caetano. Tenho enorme e eterna gratidão por esses cidadãos corajosos e empenhados. Houve um tempo em que surgiram uns alunos de fora da cidade, estranhos no ninho, causavam frisson. Fidalgos, filhos de alguns veranistas que vinha para a cidade morar por uns tempos. Um tal Carlos Alberto, do Rio, muito aguerrido, exagerado, divertido, marcou bastante. Um outro, José Antônio, moço já mais erado que nós, vinha das bandas de São Paulo e no primeiro dia de aula quase perde a vida por dizer: "lá em casa somos em seis". Nosso Português quase castiço não permitia muito regionalismo, não! Apareceu também um tal Pompilho ou Pamplona (nome por aí de estranho). Este tinha o dom de desencadear uma confusão absoluta de comunicação, tumulto grande nas aulas de Português, traumatizante. E houve também o tempo em que cambuquirenses que estudavam fora, em colégios "cariíssimos", segundo constava, totalmente "zelites", resolveram vir pra esse novo ginásio, verdadeiro acontecimento em uma cidade onde só havia o primário. Pois bem, pensei, agora ele vão arrasar, vindo de tão nobres paragens, tão pomposos educandários... mas vejam só! Eles não eram nem um tiquinho melhores do que nós! Tiveram que suar a camisa para acompanhar o ado, ado, ado! Ora! Já ia me esquecendo da fanfarra! Parte daquelas idéias erráticas, essa, de retumbante sucesso. À frente Sargento Geanini, de Três Corações. Acho que ele era também professor de Educação Física, lembro-me agora de um tal de mandar "sartitá". Adorávamos a fanfarra. Tempo de muita marcha, desfiles, viagem para apresentações em Campanha, Elói Mendes e outras cidades próximas. Aventura semelhante a de ir à Disney, hoje...Ah! Tinhamos festas juninas na escola e isso era muito bom, com toda a cidade convidada, os veranistas. E o correio elegante? Pura emoção! E o uniforme! Nossa, essa foi uma novela de fato! Saínha caqui de pregas, blusa branca e dois absurdos: chapéu redondo e gravatinha vermelha! Confeccionados a mão, pobre mamãe! Imagina o primor. Lembro-me, no desfile, dona Marta inconformada com aquelas deformidades fashion, dizendo para uns e outros: "seu chapéu está um bofe!", categoria a que o meu pertencia com louvor. Porém o mais dramático foi quando definiu-se o casaco de inverno, uma blusa vermelha de tricot. Oh, insensata idéia! Na época essa cor era relacionada ao que chamavam de "juventude transviada", gente ligada ao rock e coisas que tais, equivalente, hoje, a um PCC. O padre da cidade, que era fera, cuidador da moral e dos bons costumes, pegou o microfone da igreja e fez o maior escarcéu, anunciando, no mínimo, a excomunhão dos envolvidos na idéia. A Idade Média ficaria com inveja. Veja como essa nossa escola "causava"!Nem é bom lembrar o evento em que, para apurar um roubo de prova na escola, dona Marta teve a idéia de instituir um absurdo ilegal e psicológico, um tribunal de juri para julgar alunos. Aquilo teve como resultado um abalo císmico entre os adolescentes. Uma experiência execrável jamais repetida. Até hoje me pergunto onde andavam os adultos bem pensantes que não impediram aquilo. Era um tempo maluco. E o grêmio literário, como ia me esquecendo? Pura adrenalina. Acontecia em alguns sábados, quando dona Marta fazia avaliações para somar à nota mensal. O aluno "sorteado" (?) preparava um texto em casa e o lia para toda a escola e submetia-se, em seguida, a questões de interpretação e vocabulário. E a platéia quietinha, antenada, porque dali saiam os próximos sorteados, na hora, para responder, valendo nota, sobre aquele texto que o colega estava apresentando. Faltou? Zerinho! A escola em peso estava lá. Era sofrido mas emocionante, de novo aquela sensação de gincana.
Agora quero ver se me lembro dos colegas de sala, a começar pelos meninos: Romeu Junqueira, sucesso do basquete; Valter Ponso, ótimo em Matemática e aluno espirituoso; Antônio Carlos; Carlos Alberto; Paulo César; Joaquim César; Júlio César (parece-me agora que ando salpicando César para todo lado, mas quase juro que eram esses os nomes); Filomena, a espanhola esfusiante; Maria do Carmo, cabeça luminosa; Gilda, que se mudou para Barra Mansa; Marta; Célia Ponso, elegantíssima; Rosaly Cavalcanti, que pintava as unhas de branco, dia sim, dia não. Era filha do juíz da cidade, que também foi um bom professor de Matemática por curta temporada, certamente dona Tonete estava na maternidade. E... não consigo lembrar mais colegas (alguém me ajude) faltou eu, que depois vim para Brasília, estudar e trabalhar. Acabo de ler o "guia políticamente incorreto da História do Brasil" e concordo plenamente que, na história, acertos e erros se misturam, coisa normal, humana. O que não se pode é ignorar ou esconder os erros. Seria a inverdade, a história artificial. Essa era a nossa realidade naqueles anos. Fico pensando como meus colegas vão contar essa nossa aventura, sei que a sensibilidade de cada um, na época, vai ditar o caminho. O meu foi esse. Aguardo ansiosa o relato deles.Achei muito pertinente, ótima, a iniciativa da comemoração dos cinqüenta anos da nossa escola, mas tive um espanto muito particular, o de me sentir velha demais, peça de museu. Caí na real!
Maria Amélia Lemos Gontijo.